Mês: junho 2022

Quanto custava um brasão no Império?

Há alguns dias, no Grupo do Facebook, perguntaram sobre o brasão de um nobre do Império. E em busca desta resposta, tropeçamos num dado interessante, sobre o qual decidimos nos debruçar hoje. A verdade é que no império, a Heráldica não era concedida a título gracioso, e nem todo nobre registrou armas para o seu título, pois não custava barato.

Em 1860, o registro de um brasão podia custar o equivalente até quase 600 mil réis, ou 600 gramas de ouro.

Fazendo a conta com o valor do preço do ouro nos dias de hoje, é uma soma astronômica, de fato. Há, sem dúvida, inúmeros fatores que temos que considerar aqui, entre eles a inflação, o preço do ouro, etc. etc. Mas eu deixo esses fatos econômicos para quem puder melhor tratar deles. Por ora, trabalharei com os dados coletados por Anibal de Almeida Fernandes, 4º neto do Barão de Cajuru, que nos traz algumas informações sobre a economia em seu “Estudo comparativo entre quatro fortunas do Império Brasileiro na década de 1860” (2011):

O primeiro dado para o qual atentamos é que “em 1860, 1 conto de réis (1:000$000=1 milhão de réis) comprava 1 kg. de ouro” e “para ser nomeado Senador do Império o interessado tinha que comprovar uma renda anual de 800$000.” Guardemos esta localização histórica e temporal.

O número de nobres sem brasão (como o Barão de Croatá) no Archivo Nobiliarchico Brasileiro supera por muito o de nobres armígeros.

Para não nos fixarmos no padrão-ouro, buscamos um outro estudo, que tratasse de valores. Um excerto da “Evolução dos preços e do padrão de vida no Rio de Janeiro, 1820-1930” (1971), da Revista Brasileira de Economia (FGV), nos apresenta alguns salários anuais: Um imigrante trabalhando numa fábrica de velas ganhava 10 mil réis mensais (em 1861), um Mestre Pedreiro livre ganhava 44.120 réis mensais(em 1863). Um professor de primeiras letras aprovado em concurso, no melhor dos casos, ganhava pouco mais que 40 mil réis mensais (500$000 anuais, de acordo com a Lei das Escolas de Primeiras Letras, de 1827).

O valor da carta de brasão era mais de dez vezes isso

Pedro Moniz de Aragão, diretor do Arquivo Nacional responsável por publicar o ‘Catálogo da Exposição de Modelos de Brasões e de Cartas de Nobreza e Fidalguia (1965), conta-nos:

“Segundo folha impressa, apensada ao Armorial Brasiliense de Luís Aleixo Boulanger, datada de 2 de Abril de 1860, eram os seguintes os preços então cobrados:”

Requerimento a S.M. O Imperador e passos a respeito: 30$000

Pergaminho (para álbum de quatro folhas): 32$000

Carta de Nobreza e Fidalguia:
Caracteres dourados: 180$000
Cópia das armas para a Secretaria do Império: 25$000
Dito, para o arquivo: 25$000
Composição de Armas Novas, conforme os preceitos da ciência: 25$000
Heráldica: 25$000
Encadernação em veudo: 50$000

Despesas Fixas:
Escrevente do Cartório da Nobreza: 40$000
Despacho à Secretaria do Império: 10$000
Emolumentos do Escrivão da Nobreza e Fidalguia: 50$000
Ditos do Rei de Armas: 50$000
Para Direitos no Tesouro: 20$000
Selo da Carta de Nobreza: 30$000

O total, para uma certificação completa, seria, portanto, de 592$000. Em baixo, sob uma linha à guisa supostamente de soma, aparece a importância de 366$000. A diferença pode se referir a custos relativos à carta, possivelmente às letras douradas e à encadernação em veludo, que somadas custariam 230 mil réis. Na Biblioteca do Heráldica Brasil, por exemplo, encontra-se a Carta de Brasão da Baronesa de Sertório, que possui uma capa aveludada, mas não possui letras douradas para além do nome do Imperador. Baseado nestas informações, parece correto afirmar que Boulanger oferecia cartas de brasão mais ou menos elaboradas para os solicitantes.

Uma cópia do Brasão da Baronesa de Sertório, concedido por Luís Aleixo Boulanger, está na Biblioteca do Heráldica Brasil.

Ainda assim, não era nada barato, afinal quem queria um brasão tinha de pagar todos os custos necessários. Fernandes (id.) nos conta, por fim, que dos 986 titulados no Império, apenas 239 tiveram brasões registrados.

Referências

FERNANDES, Anibal de Almeida. Estudo comparativo entre quatro fortunas do Império Brasileiro na década de 1860. 2011. Disponível em: https://www.genealogiahistoria.com.br/index_historia.asp?categoria=4&categoria2=4&subcategoria=56. Acesso em: 5 jun. 2022.

LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer et al. Volução dos preços e do padrão de vida no Rio de Janeiro, 1820-1930 – resultados preliminares. Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 235-266, 01 out. 1971. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/67. Acesso em: 05 jun. 2022.

Pedro Moniz de Aragão (org.). Catálogo da Exposição de Modelos de Brasões e de Cartas de Nobreza e Fidalguia: colônia – reino unido – império. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1965.

Jubileu de Diamante da Rainha Elizabeth II

Neste fim de semana, o Reino Unido comemora os setenta anos da coroação da segunda monarca mais longeva da história. A Rainha Elizabeth II chega aos 70 anos de reinado este ano. Está atrás apenas de Luís XIV, o Rei-Sol de França, que reinou por 72 anos e 110 dias.

E foi para esta coroação que as armas do Reino Unido sofreram a sua última modificação. Não no brasão em si, mas no desenho.

As novas “Bestas da Rainha”

Para a coroação de Elizabeth II, na capela de Westminster, em junho de 1952, o Ministério de Obras Públicas do Reino Unido encomendou ao escultor James Woodford uma série de dez esculturas de vários badges (insígnias) reais, que ficaram conhecidas como “As Bestas da Rainha”. Estas esculturas são inspiradas outras, que foram encomendadas pelo rei Henrique VIII, para decorar o seu casamento com Jane Seymour, em 1536.

“As Bestas da Rainha”, Kew Gardens, Richmond. Foto por Ramson.

 

Dentre as esculturas, a mais importante era o Leão da Inglaterra. Sendo a única besta entre as dez que tinha a cabeça coroada, sua função era a de sustentar as armas do Reino Unido. Porém havia algo de diferente. A Historiografia falha em definir se ela é fruto de conversas entre Woodford e o College of Arms, se foi uma pedido do Ministério ou mesmo uma ideia do próprio Woodford, porém o terceiro quartel estava diferente. A Harpa, que representa a Irlanda do Norte como parte integrante do Reino Unido tinha um desenho diferente, mais gaélico.

O novo desenho aproximou as armas do (teórico) Reino da Irlanda (de facto, a Irlanda do Norte) das armas da vizinha República da Irlanda, que por sua vez já não exibiam mais a harpa com cabeça humana e seios à mostra desde o ano de 1922.

Dois anos depois, em 1954, a Rainha expressou sua preferência pela harpa em estilo gaélico. Desde então as armas reais tem sido desenhadas neste estilo. Pode-se notar que a harpa antiga sumiu da maioria dos lugares.

Rainha Elizabeth chegando ao Epsom Derby, em 2015. Note-se a Harpa Gaélica na bandeira e na capota do carro.

Da mesma forma, também não vemos mais a harpa antiga nos brasões concedidos à sua descendência e familiares, que como se sabe, usam brisuras das armas da Rainha, como é o caso do Duque de Sussex e de sua Esposa:

As Armas da Duquesa de Sussex

As armas da Duquesa de Sussex, num escudo partido com as armas de seu marido, neto da Rainha. A harpa não tem um vislumbre de figura humana sequer.

A Heráldica é uma Arte

Porém, algo que não podemos esquecer é que a heráldica é uma linguagem que permite múltiplas representações artísticas do mesmo conceito (o brasão em si). Portanto, independente de como se desenhe a harpa, as armas do Reino Unido (fora da Escócia) seguem as mesmas:

Quarterly, I and IV Gules, three lions passant guardant in pale Or langued and armed Azure. II Or a lion rampant Gules armed and langued Azure within a double tressure flory-counter-flory Gules. III Azure a harp Or stringed Argent.

Esquartelado: I e IV de vermelho, três leões passantes guardantes de ouro, armados e lampassados de azul. II de ouro, um leão rampante de vermelho, armado e lampassado de azul dentro de uma orla dupla flordelisada de vermelho. III de azul, uma harpa de ouro, cordada de prata.

Ou seja, heraldicamente, a harpa de seios de fora não está errada. Vejam a foto do o Garter King of Arms. Já falamos sobre Sir Thomas Woodcock antes. Eu o considero, indubitavelmente, o homem mais importante da heráldica nos nossos dias. No tabardo, vestimenta oficial de sua função, a harpa antiga.

Fonte: Christopher Bellew. Foto por Hugo Rittson Thomas

Ficam as teorias e as especulações sobre a mudança no desenho. Poderia ter sido isto uma tentativa de aproximá-la da harpa da República da Irlanda, seja visando uma reaproximação? Talvez uma forma de estabelecer uma possível reclamação territorial? Ou quem sabe pode ter sido um impulso moralizador da própria rainha, buscando substituir a tão criticada nudez feminina e os tão polêmicos mamilos por uma solução mais pudica?

São pequenos detalhes como estes que fazem a Heráldica ser tão interessante afinal. Ela é, mesmo depois de tantos séculos, uma ciência viva e sujeita às mudanças do mundo.

 

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