Bem-vindos ao texto básico do Heráldica Brasil: “O que é um brasão?” É um texto um pouquinho mais longo, contudo compreender este conceito é importante para todo estudioso de Heráldica. Se vocês tiverem dúvida sobre qualquer conceito apresentado nesse website, voltem a esse texto e o leiam calmamente, porque se este conceito não ficar claro, muito do blog pode ficar meio nebuloso.

O que é um brasão? é uma pergunta que parece inócua. Tanto que a grande maioria das pessoas passa por toda a vida sem precisar pensar nela. Brasões não são grande coisa nos dias de hoje, pelo menos não para nós. Com a evolução das capacidades militares, carregar um escudo decorado para nos diferenciar não é necessário.

Conceito

Usa-se comumente o termo “Brasão de Armas”, porém nos dias de hoje, o conceito de “armas” pode causar confusão. Nas palavras de Alejandro de Armengol y de Pereira (1933, pp. 11-12):

“…la Heráldica, propiamente, estudia las armas o armerías, voces que no designan de ningún modo instrumentos para ofender o defenderse de los enemigos, sino que procediendo de la palabra latina arma , en su acepcion de insignia, se refieren a los emblemas honoríficos…”.

Ou seja, “armas” nesse contexto são “insígnias” ou “emblemas honoríficos”. Guardemos, pois, este conceito: “Um brasão é a representação das insígnias de uma pessoa, dentro dos termos estudados pela heráldica”. Partindo do pressuposto que as insígnias de uma pessoa são a representação de sua identidade, podemos simplificar como:

O brasão é uma representação da identidade de quem o possui, dentro dos padrões heráldicos.

Portanto, estando dentro dos padrões heráldicos, não importa como ele é representado, apenas que ele é a representação heraldicamente correta. E isto conclui a parte teórica da minha explicação. O conceito ainda pode parecer um pouco nebuloso. Contudo, tudo se esclarece quando pensamos nas possibilidades da representação do brasão. Para facilitar a compreensão, vamos ter, por exemplo, imagens daquele que seja talvez o brasão mais conhecido dos dias de hoje, o das armas de Sua Majestade, a Rainha Elizabeth II, do Reino Unido.

Um brasão pode ser representado em um escudo

De fato, o escudo é o item básico da Heráldica. Afinal, foi a partir da pintura de símbolos de identificação que a Heráldica surgiu. De acordo com esta publicação, do site da Casa Real Britânica, estas são as armas de Sua Majestade, a Rainha Elizabeth II:

E estas são as mesmas armas, de acordo com a Wikipedia. O desenho é do usuário Sodacan, e está no Wikimedia Commons. Assim, é provavelmente o mais conhecido entre todos os desenhos das armas de Sua Majestade:

Olhando bem, somos capazes de perceber as similaridades. Elas estão nas curvas da harpa, na forma com que os emblemas florais são representados, nos arcos da Coroa Imperial. Ora que é que podemos perceber aqui? Apesar do desenho ser diferente, ambas as representações das armas estão correta. Ou seja, podemos concluir que um brasão não depende de seu desenho, e portanto, pode ter várias representações possíveis, afinal, cada artista desenha de uma forma.

Um brasão não precisa ser representado em um escudo

Contudo, vejamos mais, não paremos por aqui. A seguir temos uma foto do Estandarte Real de Sua Majestade no Palácio de Buckingham, direto do Mirror, um conhecido jornal britânico.

Fonte: Rex Features

Aqui, a mudança estilística é bem mais óbvia. Por mais que tenhamos uma coroa na ponta do mastro, não há a menor possibilidade de exibir um elmo coroado ou as bestas que sustentam o escudo. Ora, nem escudo há. Ainda assim, este é um estandarte heráldico oficial. Diz Iain Moncreiffe, na época Passavante Kintyre (e depois Albany Herald) na Corte de Lord Lyon, contraparte escocês do College of Arms, em seu Simple Heraldry Cheerfully Illustrated (1953, p. 38):

The quarterly coat is flown as the personal flag of the Sovereign as such, and marks Her Majesty’s presence.

Em tradução livre: “Dessa forma, O esquartelado (das armas) é exibido como estandarte pessoal do Soberano, e marca a presença de Sua Majestade (a rainha).”

Um brasão não precisa ser representado em um escudo (II)

E já que falamos, mesmo que indiretamente, em Lord Lyon, o chefe da heráldica em terras escocesas, vamos falar também de seu contraparte inglês, o Garter King of Arms. Em português, Rei de Armas da (Ordem da) Jarreteira. Este é Sir Thomas Woodcock, talvez o homem mais importante da heráldica nos nossos dias.

Fonte: Christopher Bellew. Foto por Hugo Rittson Thomas

Analisando os trajes cerimoniais do principal heraldista britânico, podemos ver que elas trazem as mesmas armas que o escudo e a bandeira. Nos armoriais medievais, ornamentos externos são raros, como é o caso dos escudos no cabeçalho desse blog. Ou seja, o brasão é sempre o mesmo, independente de ser representado num escudo ou não, e os ornamentos externos como coroas, medalhas e elmos são secundários e dependem da reprodução. Neste caso, o esquartelado representa duas vezes o brasão do Reino da Inglaterra, uma vez o brasão do Reino da Escócia e uma vez o Brasão do Reino da Irlanda (efetivamente, a Irlanda do Norte).

O conceito de Campo

Juntando as informações, efetivamente podemos dizer que um brasão é uma representação da identidade de alguém, em termos heráldicos, e que não necessariamente é exibida num escudo. No caso, a palavra comumente usada é campo. O campo pode ser qualquer coisa. O escudo é o mais comum, de fato, porém uma bandeira ou um tabardo, como vimos acima, também podem ser campos. As coloridas cobertas brasonadas dos cavalos nas justas medievais também eram um campo. Inclusive, até mesmo uma roupinha de cachorro poderia ser um campo, como nos mostram as Crônicas de Jean Froissart, um documento histórico contando da Guerra dos Cem Anos. Vejam no centro da imagem, bem entre os cavalos, um cachorrinho vestido nas armas do Rei da França:

Um brasão pode, para simplificar, ser um texto

Um brasão pode ser representado num escudo. Pode ser representado numa bandeira, nas cobertas de um cavalo, até mesmo na roupinha de um cachorro. Contudo, essas constatações geram dúvidas. como é que vai se saber que o brasão está 100% certo? E se o brasão mostrar um carvalho e a outra pessoa desenhar um pinheiro? Essa era uma dúvida que os primeiros heraldistas possivelmente tinham. Como garantir que sempre se desenharia a mesma coisa, e como garantir que seria possível registrar a todos? É aqui que entra a escrita. Um brasão pode ser um texto, que descreva o que é que se apresenta no campo. Ora, se o campo é o item primordial, então vamos descrevê-lo. Neste elaborado caso, vamos escolher apenas um dos três brasões apresentados no esquartelado do Reino Unido, o da Irlanda:

De azul, uma harpa de ouro, cordada de prata.

O valor do brasão escrito

Uma descrição simples e clara permite ao artista saber exatamente o que ele tem de fazer quando desenhar o brasão, sem limitar a sua criatividade. Nós podemos perceber claramente nas imagens lá em cima que a harpa é a figura que mais varia em estilo. Enquanto nos escudos ela tem traços mais simples, no Estandarte Real e no traje de Sir Woodcock ela é bem mais elaborada, com tronco e cabeça de mulher formando o seu corpo, uma referência que ficou famosa até nos desenhos animados. Permite de igual forma que os registros sejam feitos de forma ágil e que as pessoas lembrem do brasão com facilidade. O que é mais fácil: Falar em “De Ouro, com três leões passantes de azul, armados e coroados de ouro, lampassados de vermelho, entre nove lírios de água vermelhos”, ou ter que desenhar todo o escudo da Dinamarca?

Futuramente, pretendo falar mais sobre aquelas complicadas descrições que vemos por aí, geralmente descontextualizadas. Mas por ora, com todas estas informações em mente, me permitam uma definição mais utilitarista do que seja um brasão.

Enfim, a minha definição é mais longa e explicativa do que necessariamente óbvia, mas tentei deixá-la o mais direta possível:

Um brasão é um código que pode ser descrito e exibido de várias formas, mas sua forma primordial, e a qual mais comumente chama-se de “brasão”, é a da descrição dos emblemas heráldicos de uma pessoa. É a partir desta descrição que o desenhista vai criar o desenho.

Referências

PEREYRA, Alejandro de Armengol y de. Heráldica. Barcelona: Editorial Labor, 1933.

MONCREIFE, Iain; POTTINGER, Don. Simple Heraldry Cheerfully Illustrated. Londres: Thomas Nelson and Sons Limited, 1953.